O Independente, o foca e o DNA do jornalismo taboanense

Cláudia Funari, fundadora do O Independente, vereador Wanderley Bressan, eu, deputada Analice Fernandes e o ex-prefeito Fernando Fernandes
Por Eduardo Toledo
Há quem diga que o jornalismo é uma vocação. Eu prefiro pensar que ele é uma teimosia. Uma dessas teimosias boas, daquelas que fazem a gente continuar escrevendo mesmo quando ninguém mais quer ouvir. Foi essa teimosia que me levou, lá pelos idos de 1995, a bater na porta do O Independente, um jornal que tinha alma grande e cheiro de tinta fresca.
Entrei no jornal antes mesmo de começar a faculdade de Comunicação. Na verdade, caí lá quase por acaso, ou por obra do destino, que adora inventar caminhos tortos para a gente se encontrar. Foi dona Ana, mãe da Priscila Arnoni, quem me indicou. Ela lia as poesias que eu escrevia e achava que seria uma boa ideia publicá-las no O Independente.
Claudia Funari, editora do jornal, ao ler meus versos, provavelmente não achou grande coisa (e com razão), mas percebeu ali uma fagulha qualquer, um lampejo de inquietação, e me convidou para ser foca do jornal. Aquele dia, distante há trinta anos, mudou tudo. Mudou minha vida, minha visão de mundo e principalmente o jeito como eu entendo as palavras. Claudia, com sua visão cartesiana, matou em mim o sonho de ser poeta. Mas, paradoxalmente, salvou a minha poesia. A sensibilidade continuou, só trocou de formato.
Eu era um foca, desses que ainda se espantam com a primeira pauta e tremem ao ver o nome impresso no rodapé da matéria. Claudia Funari me recebeu com aquela calma que só os grandes mestres têm. Ela foi minha primeira editora, minha primeira professora e, talvez sem saber, minha primeira referência de coragem. Ela e o marido, Daniel Chaves Sá Borges, que me apresentou o enigmático universo do Pagemaker, foram os alicerces de tudo o que viria depois.
Éramos jovens e por isso acreditávamos em tudo. Acreditávamos que uma boa matéria podia consertar o mundo, que o texto certo podia mudar uma cidade, que a verdade bastava. Essa ingenuidade, que o tempo chama de inexperiência, eu prefiro chamar de pureza. Porque era isso que nos fazia melhores: éramos puros, e o jornalismo ainda era romântico.
As redações dos jornais tinham cheiro de café requentado e os computadores começavam a substituir as máquinas de escrever. As conversas eram longas, as certezas curtas e os prazos impossíveis. Mas havia uma poesia ali, uma fé quase infantil na força da palavra. Aprendi que jornalismo não é o que fala mais alto, mas o que escuta melhor. Que é preciso ouvir os dois lados, mesmo quando um deles quer te convencer de que só existe o dele.
Nesse tempo todo tive também a honra, e o desafio, de editar, durante dois anos, a coluna de Mário Henrique, o colunista social e político mais lido da história de Taboão da Serra. Cada texto dele era uma veradeira batalha campal, uma daquelas brigas saborosas de redação, onde a razão mudava de lado conforme o argumento ganhava ritmo. Eu teimava, ele contra-argumentava, e, no fim, ele sempre me convencia de que estava certo. Mas, de algum modo, eu saía vencedor: porque aprendia com ele a cada coluna, e ainda tinha o privilégio de “sobreviver” para ver, todo sábado, o desfile de inteligência, ironia e carisma que fazia de Mário um fenômeno. Era impossível editar seus textos sem rir, sem admirar e, claro, sem ouvir ao final sua frase lendária, que encerrava qualquer discussão: “Sangue de Jesus tem poder.”
Aprendi ali que jornalismo não é sobre dar notícia. É sobre dar sentido. É sobre olhar para o pequeno, para o aparentemente banal, e encontrar o ser humano que dá vida ao município por trás de cada esquina. Em Taboão da Serra, aprendi que notícia boa é aquela que nasce da calçada, do balcão do bar com uma cerveja gelada, do banco de praça, do café da padaria. Foi ali, entre deadlines e manchetes, que descobri o valor do jornalismo regional: esse que conta a história da cidade antes que ela desapareça na pressa das metrópoles.
Na última sexta-feira, dia 10, o O Independente celebrou 15 anos de trajetória, e foi impossível não me ver refletido naquela história. Claudia, mais uma vez visionária, entregou as 602 edições do jornal para a Unifecaf, que agora as preservará como um tesouro histórico aberto a todos. Cada exemplar é um fragmento da memória taboanense, um retrato do que fomos, do que sonhamos e do que ainda somos.
Reencontrei velhos amigos: Doriana, que fazia a distribuição e conhecia cada rua da cidade de cor; Betão, o braço direito que resolvia o que aparecesse; dona Lilian, guardiã dos exemplares, que não deixava ninguém sair da banca com dois jornais “porque um é pra ler e o outro é pra guardar”. Também estavam lá os ex-vereadores Said Jorge de Moraes, meu padrinho de casamento, Wagner Eckstein, Oscar Ferreira, Paulo Félix e Natal. Além da deputada estadual Analice Fernandes. E, claro, Fernando Fernandes, que saiu das colunas do O Independente direto para o cargo de prefeito, acumulando quatro mandatos e uma longa história com Taboão.
Durante o evento, Claudia Funari fez questão de lembrar que a história do O Independente também se entrelaça com a de outros jornais que ajudaram a construir a identidade de Taboão da Serra. Citou o jornal O Cidadão, de Nilson Latorre; a Gazeta do Taboão, de Miriam Barcellos; e o ícone Waldemar Gonçalves, considerado o verdadeiro percursor do jornalismo taboanense. Foi um gesto bonito, desses raros no meio jornalístico, de reconhecer que a cidade só teve uma imprensa forte porque muitos veículos caminharam juntos, cada um à sua maneira, registrando o tempo e dando voz ao povo. Claudia deixou de lado qualquer rivalidade e exaltou a importância de todos, lembrando que, antes de concorrentes, éramos, e continuamos sendo, parte da mesma história.
Foi uma noite de reencontros e lembranças, dessas que fazem o tempo dar um nó na garganta. Senti orgulho e gratidão. O mesmo orgulho que sinto ao ver o jornalismo taboanense se reinventar — agora com pixels no lugar de papel, mas com o mesmo propósito: contar a verdade, ouvir os dois lados e dar voz a quem quase nunca é ouvido.
A iniciativa desse eventohistórico partiu do vereador Wanderley Bressan, que tem se mostrado um defensor da democracia através do jornalismo. Foi dele a ideia de realizar a homenagem e reunir nomes que ajudaram a contar e a entender a história de Taboão da Serra. Um gesto simbólico, mas poderoso, num tempo em que o jornalismo precisa mais de aliados do que de aplausos. Em meio a discursos fáceis e opiniões instantâneas, Bressan fez o que um democrata de verdade faz: reconheceu o valor da imprensa livre e o papel essencial que ela exerce na construção de uma cidade mais justa, crítica e consciente.
Hoje, à frente do Portal O Taboanense, sigo acreditando que o jornalismo é o ponto de equilíbrio entre o amor e o desconforto. Amamos a cidade, mas também a provocamos. Aplaudimos suas conquistas, mas cobramos os tropeços de seus políticos. Não há imparcialidade nisso, há compromisso. E, talvez, seja exatamente isso que o jornalismo regional tem de mais bonito: a coragem de ser destoante, mas necessário.
E nessa sociedade que anda cheia de fake news, de versões tortas e verdades embaladas a vácuo, eu sigo com a velha receita da Claudia: “Apura direito, escreve limpo e nunca tenha medo de incomodar”. Ela mesma, durante o evento, lembrou de um tempo em que não existiam fake news e a confiança nas informações era quase sagrada. “Na época, quando falávamos de vacinação, a taxa de imunização era de 90%”, recordou. Hoje, por culpa desses imbecis que mentem, distorcem e inventam, a saúde das nossas crianças está em risco. É por isso que o jornalismo segue sendo indispensável: para separar o fato da farsa, o dado da crença e a responsabilidade da conveniência.
O jornalismo mudou e, confesso, nem sempre para melhor. As redes sociais transformaram a informação em um grande liquidificador, onde tudo se mistura: opinião, boato, raiva, dancinha e “breaking news” sem filtro. Nada mais é checado, apurado, confirmado. E isso, só o jornalismo profissional ainda é capaz de fazer.
Hoje, um vídeo tremido, mal gravado e sem contexto tem mais alcance do que um texto bem escrito, pensado, apurado que é, afinal, a minha área e a minha paixão. É a era do instantâneo, do descartável, do “compartilhar antes de entender”. Ainda assim, sigo acreditando que escrever vale a pena, mesmo que poucos cheguem até o fim deste artigo. Se você chegou, parabéns, é provável que também acredite, como eu, que o jornalismo, por mais maltratado que esteja, ainda é uma das últimas formas honestas de amar o mundo.
E se o mundo é feito de ruído, que sejamos o som da razão. Se o tempo apaga memórias, que sejamos o papel que resiste. E se um dia perguntarem de onde veio o O Taboanense, responderei sem pensar: Veio do O Independente. Veio da Claudia. Veio de Taboão da Serra. E, acima de tudo, veio da teimosia de acreditar que jornalismo ainda pode mudar o mundo, começando pela nossa própria cidade.