Mário Aparecido: o jornalista que enxergou além da escuridão
Por Eduardo Toledo
A última vez que ouvi a voz do meu amigo Mário Aparecido foi no dia 19 deste mês. Liguei sem motivo especial, talvez porque a gente sempre acha que ainda há tempo, e ele atendeu do mesmo jeito de sempre, do mesmo jeito de mais de vinte e cinco anos: “Eduardo Toledo? O jornalista sem medo?”.
Era se fosse um bordão dele e um abraço ao mesmo tempo. Mário tinha essa capacidade. O humor saía dele sem esforço, como quem respira. E mesmo quando a vida apertava, e ela apertou tantas vezes, ele continuava com o sarcasmo pronto.
Em todas as ligações, nunca desligava o telefone sem perguntar do Dudu, meu filho. Mesmo sendo são-paulino roxo, sofria comigo pelo Santos e insistia em dizer pra eu não fazer meu moleque sofrer torcendo para a, quase eterna, má fase do Peixe. Essa é a medida de uma amizade que atravessou três décadas.
Mário era desses sujeitos que via mais do que muita gente mesmo sem enxergar. Antes da escuridão dos olhos chegar, ele já decifrava sombras do poder, da política, depessoas. Depois que perdeu a visão, em 2006, o mundo achou que o jornalismo dele ia diminuir. Mas a vida mostrou outra face, Mário ficou mais Mário. E do escuro fez farol.
Lembro de uma vez em que soltamos juntos um jornal polêmico. Foi confusão danada, processo, apreensão de exemplares, polícia… na época, um caos; depois, virariam as gargalhadas e o batismo definitivo da nossa parceria. Me senti um jornalistas de guerra, sem trincheira, mas com coragem.
Mário também foi professor da rede estadual, mas, no fundo, era mesmo professor de jornalismo, desses que não precisam de sala de aula porque dão lição até quando erram. Tinha senso de união entre todos os veículos da região, uma visão generosa da imprensa local. Defender o jornalismo regional era a militância dele. E, por isso, incomodava. Cutucava poderosos com a ponta de uma pena imaginária, feita de sarcasmo, coragem e experiência.
A Coluna do Pombo, essa invenção genial, virou lenda. Místico, irônico, popular, certeiro… um pombo que entregava recados que muita gente preferia não ler. “Se a gente que é pombo não fala… ninguém fala”. Era o jeito dele de lembrar que jornalismo não é silêncio, é rasgo. É ir até onde dói. E como doía em muita gente.
Uma vez, em 2002, contei ao Mário que criaria O Taboanense, o primeiro veículo on-line da região. Ele soltou uma daquelas risadas irônicas e disse que nada substituiria o cheiro do jornal impresso, mas, ainda assim, me apoiou sem hesitar. Não duvidou por um segundo. Pelo contrário: incentivou, aconselhou, apostou em mim. Anos depois, durante um almoço disse reconhecer o pioneirismo e dizer que eu estava certo. E mesmo quando discordava, torcia junto. Sempre.
Mário não era “jornalista de Taboão da Serra”. Era jornalista da região inteira. Do Conisud inteiro. De Embu das Artes a Juquitiba, passando por Itapecerica, São Lourenço e Embu-Guaçu. Talvez o mais regional de todos nós. Ele conhecia as cidades como quem conhece a palma da mão: pelo tato, pela memória, pelo afeto.
E sua família era extensão natural do jornal. A Folha do Pirajuçara é tão deles quanto dele. Mário não trabalhava para o jornal, ele vivia o jornal. E fazia cada edição como quem planta raízes.
Mário se foi nesta quinta-feira, 27, aos 64 anos, vítima de um infarto. Um gigante da comunicação regional, hoje ele encerrou a própria linha editorial. E fica um silêncio que não é comum: é desses que ecoam.
A trajetória dele, que começou em Santo André, passou pela Cásper Líbero, pelos jornais mais importantes da região, pelas câmaras municipais, pelas prefeituras, pela sala de aula, atravessou também a escuridão que a diabetes trouxe e ainda assim, ele continuou vendo. Porque ver, para alguns, é uma teimosia da alma.
Casado há 40 anos com Sandra, pai amoroso, avô multiplicado, jornalista por destino e vocação, Mário deixa muito mais do que páginas impressas e histórias contadas. Deixa uma lição: a notícia só vive de verdade quando alguém tem coragem de dizê-la. E coragem ele tinha de sobra.
Hoje, o silêncio dele pesa. Mas não é um silêncio vazio, é daqueles que ecoam. Porque a voz do Mário, mesmo calada, continua cutucando, continua ensinando, continua nos lembrando por que fazemos o que fazemos.
E se há um consolo possível, é saber que algumas pessoas não partem: elas seguem morando na memória, nos textos, nas conversas, nos risos inesperados e nas histórias que ainda vamos contar sobre elas.
Mário era uma dessas pessoas.
E sempre será.