Leia na integra a carta de renúncia do prefeito Capitão Lener
Tal qual o ensaio do camponês florentino de Saramago*, descreverei a seguir, os melancólicos motivos desse passamento e suas funestas consequências para toda a comunidade deste município, bem como para este Prefeito e seus familiares.
De pronto, destaco que com a morte e consequente ausência da guardiã do Estado Democrático de Direito, ascenderam-se os membros da associação criminosa que atuou no interior da Prefeitura Municipal no anterior período de 2005 a 2008.
E, também desde já, para imediata compreensão do que pretendo, confesso que com a ascensão desses ávidos salteadores de dinheiro público, os quais não por acaso acumulam a qualificação de cruéis homicidas, não me resta outra saída senão capitular. Capitular, pois tais bandidos, com a ausência da Justiça, estão retornando das profundezas em que foram lançados e gradativamente reassumindo o domínio dos poderes constituídos que operam em nossa cidade e restaurando a influência naqueles inúmeros outros órgãos institucionais externos que de alguma forma exercem jurisdição em nossa região administrativa.
Foto: Eduardo Toledo
O ex-prefeito de São Lourenço da Serra, Capitão Lener
É necessário evidenciar que o renascimento desses criminosos é resultado exclusivo do esvaecimento da Justiça brasileira, sendo certo, por conseguinte, que esta anunciada rendição não decorre somente das contínuas ingerências arbitrárias e ilegais e das inúmeras coações no curso do processo a que este Prefeito e sua esposa Izabel vêm sendo vítimas, sem a menor proteção jurisdicional. Igualmente, não resulta do fato de ambos estarmos sendo alvo de consecutivas tentativas do que se conhece como "assassinato de reputação" perpetrada pela associação criminosa e seus seguidores e que em determinados foros nos transformou de vítimas em réus, num processo kafkiano de inversão de sujeitos, sem também obtermos o mínimo amparo de nossa Justiça, não obstante as persistentes súplicas formalizadas. Muito menos deriva dos profundos prejuízos em nossa condição econômico-financeira, malbaratada que foi em virtude de havermos nos obrigado a abandonar nosso aconchegante lar fixado nesta bela cidade para, já há quase dois anos, vivermos em exílio voluntário em um frígido cubículo na capital do Estado, exclusivamente para não sermos mortos, como outros foram, por essa sanguinária quadrilha, a qual inclusive evidencia contar com o beneplácito da Justiça brasileira, aí compreendidos o Judiciário, o Ministério Público, o Tribunal de Contas do Estado e da União, a Polícia Judiciária Estadual e Federal, dentre outros. Aliás, tudo isso nos seria até mesmo suportável, pois como muitos já testemunharam nas três vezes em que eu e minha mulher dirigimos o Poder Executivo Municipal, dispomos de coragem, determinação e desprendimento suficientes para qualquer enfrentamento com políticos imorais e criminosos das mais distintas espécies.
Ocorre, porém, que esse impune bando e seus asseclas descobriram o ponto nevrálgico que nos faz fenecer: o dano a nossa população pelo próprio poder constituído, como consequência da beligerância entre os poderes. Esses criminosos associados, vendo que nenhuma das ações malévolas contra nós lançadas nos impede de bem administrar; vendo nossa abnegação em defesa desta frágil comunidade; e, vendo-se impunes diante de uma Justiça lenta, leniente e intimidada, que os conduz inclusive a concluírem que já conquistaram o perdão dos hediondos crimes praticados, atuam agora abertamente, sem qualquer pudor, contra a implantação na cidade de novas obras, novos serviços e novos investimentos, através do total cerceamento da execução orçamentária, causando perdas imensas a nossa população. Muito embora tenhamos tentado de todas as maneiras éticas impedir que esse estado belicoso estabelecido entre os poderes chegasse a tal ponto, fomos vencidos.
Tal situação compromete irremediavelmente a governabilidade e a governança municipal além de ferir de morte a reconstrução de nossa cidade que atualmente ocorre a olhos vistos. Não podemos permitir que isso persista neste momento em que nossa administração conquistou, ainda na primeira metade de nosso período de governo, a recuperação no Índice de Desenvolvimento do Ensino Básico, o IDEB, vilipendiado que foi pela corrupta administração passada (de 4,5 em 2007, passou para 5,3 em 2009); em que conseguiu reduzir para um padrão de país desenvolvido o índice de mortalidade infantil (de 14,6 em 2008 para 10,2 em 2009); em que reconstruiu os sistemas municipais de educação, saúde, infra-estrutura e saneamento básico, literalmente dizimados pela administração que nos antecedeu. Além disso, inúmeras obras públicas encontram-se em andamento e muitas outras estão prestes a iniciar, achando-se dezenas de outros convênios com os governos estadual e federal já em fase de assinatura. Acresce-se ainda a essa venturosa recuperação em curso, a certeza de um aumento substancial das receitas públicas para o próximo exercício de 2011.
Pois tudo isso corre risco iminente de paralisação e perda se a quadrilha não for contida de uma forma ou de outra, e, como vislumbro desalentado que a Justiça continuará inerte, pois morta está, não me resta alternativa se não a de promover, de maneira assaz traumática, a reorganização e o apaziguamento das iníquas lideranças políticas envolvidas.
E, para que isso aconteça é fator primordial meu integral afastamento, pois todos sabem que jamais transigirei com a corrupção e muito menos acolherei como sinônimos de governabilidade e governança as fétidas práticas fisiológicas de mensalinhos ou mensalões.
Assim, através da presente carta, comunico a minha renúncia ao cargo eletivo de Prefeito do Município de São Lourenço da Serra.
Estou certo de que meu substituto natural está plenamente capacitado para assumir a direção desta administração municipal sem tamanhas agruras, pois já foi vereador e presidente da câmara, pelo que saberá muito bem, com essa importante experiência político-administrativa acumulada, livrar-se desses impedimentos e com total liberdade dar continuidade às metas e prioridades contidas na Lei Municipal do Plano Plurianual, principal instrumento de planejamento e gestão a viger até o ano de 2013 e que se obrigará a cumprir. E ele poderá contar – se quiser – com minha irrestrita e fiel colaboração no encaminhamento e execução dos numerosos projetos em andamento e daqueles que deixei por iniciar nos próximos dias, desde que para tanto não tenha eu de compartilhar do mesmo espaço com os impunes criminosos que devastaram nossa cidade e que querem a qualquer custo retornar ao poder. Com eles ou com seus asseclas jamais me assentarei.
Aliás, a esses nefastos um aviso importante: abdiquei ao poder e a Justiça pode estar sem vida, mas não pensem que me acovardei ou que, como ela, morri. Portanto, aguardem-me!
Registro, por fim, que muito embora atribua à Justiça morta a determinante deste meu ato capital, ainda assim acalento a firme convicção de que ora ou outra ela haverá de renascer. E essa será minha nova missão, pois muito embora também abandone definitivamente a militância político-partidária para a qual demonstro não ter a menor vocação, minhas próximas ações fora do cargo estarão voltadas a estimular a viva aplicação da Justiça contra os atos de corrupção e outros abusos havidos nesta cidade e que desviaram no mínimo US$ 10 milhões de recursos públicos. Mesmo que para tanto tenha que recorrer a tribunais e cortes internacionais ou ainda a tratados transnacionais recentes dos quais o Brasil foi signatário, como a Convenção Interamericana Contra a Corrupção (CICC), da Organização dos Estados Americanos (OEA/1996); a Convenção Anticorrupção, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE/1997); ou a Convenção da Organização das Nações Unidas contra a Corrupção (ONU/2003). Nem que para tanto tenha que buscar amparo em institutos jurídicos pouco consagrados como a objeção de consciência e a desobediência civil ou até mesmo à greve de fome.
Trabalhemos, pois, pela prontidão desse tão aguardado e imprescindível renascimento.
São Lourenço da Serra, 24 de novembro de 2010.
Lener do Nascimento Ribeiro
Prefeito-Renunciante
DA JUSTIÇA À DEMOCRACIA PASSANDO PELOS SINOS
José Saramago
Começarei por vos contar em brevíssimas palavras um facto notável da vida camponesa ocorrido numa aldeia dos arredores de Florença há mais de quatrocentos anos. Permito-me pedir toda a vossa atenção para este importante acontecimento histórico porque, ao contrário do que é corrente, a lição moral extraível do episódio não terá de esperar o fim do relato, saltar-vos-á ao rosto não tarda. Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja.
Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo sucedido no século 16) os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento. Saíram portanto as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os mesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a quem deveriam chorar.
O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar. Ora, não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o morto. "O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino", foi a resposta do camponês. "Mas então não morreu ninguém?", tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: "Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta." Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítio os marcos das estremas das suas terras, metendo-os para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada.
O lesado tinha começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às autoridades e acolher-se à protecção da justiça. Tudo sem resultado, a expoliação continuou. Então, desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o exacto tamanho do mundo para quem sempre nela viveu) a morte da Justiça. Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria comover e pôr a tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos eles, sem excepção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada.
Um clamor tal, voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, saltando por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força haveria de acordar o mundo adormecido… Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o camponês a repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de todos os dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo…
Suponho ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça.
Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exacto e rigoroso sinónimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito como indispensável à vida é o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em acção, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludível imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste. Mas os sinos, felizmente, não tocavam apenas para planger aqueles que morriam.
Tocavam também para assinalar as horas do dia e da noite, para chamar à festa ou à devoção dos crentes, e houve um tempo, não tão distante assim, em que o seu toque a rebate era o que convocava o povo para acudir às catástrofes, às cheias e aos incêndios, aos desastres, a qualquer perigo que ameaçasse a comunidade. Hoje, o papel social dos sinos encontra-se limitado ao cumprimento das obrigações rituais e o gesto iluminado do camponês de Florença seria visto como obra desatinada de um louco ou, pior ainda, como simples caso de polícia. Outros e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade, enfim, da implantação no mundo daquela justiça companheira dos homens, daquela justiça que é condição da felicidade do espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do próprio alimento docorpo.
Houvesse essa justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns, mas não para outros. Houvesse essa justiça, e a existência não seria, para mais de metade da humanidade, a condenação terrível que objectivamente tem sido. Esses sinos novos cuja voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos movimentos de resistência e acção social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa que todos os seres humanos possam chegar a reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça protectora da liberdade e do direito, não de nenhuma das suas negações.
Tenho dito que para essa justiça dispomos já de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que esse código se encontra consignado desde há cinquenta anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aqueles trinta direitos básicos e essenciais de que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente se silencia, mais desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há quatrocentos anos, a propriedade e a liberdade do camponês de Florença.
…………………………………………………………
Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor.